terça-feira, 20 de maio de 2008

Eu sei, mas não deveria

Esse texto reflete bem a nossa atualidade... a nossa triste realidade! Leiam e reflitam....



Eu sei, mas não deveria. Eu sei que a gente se acostuma. Mas não deveria. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra visão que não seja as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostumamos a não olhar lá fora,. Logo nos acostumamos a não abrir as cortinas. E porque não abre as cortinas , logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltada porque já está na hora. A tomar café correndo porque já está atrasado. A ler o jornal no ônibus, porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter visto o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre guerra. Aceitando a guerra, aceitando os mortos e que haja número para mortos. Aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita a ler todo dia de guerra, dos números e da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “Hoje não posso ir”. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e necessita. A lutar para ganhar o dinheiro com que se paga. E ganhar menos do que precisa. E fazer fila para pagar. E pagar muito mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que em que se cobra.

A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir comerciais. A ir o cinema e engolir publicidade. A ser castigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtores.

A gente se acostuma à poluição. A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À lente morta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fileira e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensado no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que se fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar as feridas, sangramentos. Para esquivar-se da faca da baioneta, para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto se acostuma, se perde de si mesmo.

(AUTORA: Marina Cossanti)

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